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Todes pelo fim - [do estigma linguístico, da transfobia e do racismo]

COLUNISTA - Maicol Wendrell, Matheus Schwartzmann

Maicol Wendrell

  • 23/03/22
  • 11:00
  • Atualizado há 139 semanas

Maicol Wendrell

Mestrando em Educação Unesp de Marília

Professor de Língua Portuguesa formado pela Unesp de Assis

Especialista em Gênero e Diversidade Escolar

Militante PCB

Matheus Schwartzmann

Doutor em Linguística e Língua Portuguesa

Professor de Linguística do Curso de Letras da Unesp de Assis

Coordenador do Programa de Pós-graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Unesp de Araraquara

Coordenador do PIBID - Língua Portuguesa (CAPES)

Divulgação - Maicol Wendrell, e Matheus Schwartzmann - Foto: Divulgação
Maicol Wendrell, e Matheus Schwartzmann - Foto: Divulgação

A língua portuguesa ocupa lugar central na vida de qualquer pessoa: é conteúdo escolar, que leva à compreensão da cultura, da leitura de textos da vida cotidiana e da literatura.

Por isso, a formação acadêmica de professores de língua portuguesa, ao contrário do que se pode imaginar, deve ter por objetivo o exercício crítico, cidadão e científico do pensamento, não podendo ceder às tentações do senso comum, da ignorância e do preconceito, levando em consideração, portanto, toda a diversidade de formas da língua, incluindo dialetos sociais, gírias, modismos e tudo aquilo que fizer parte da realidade linguística do falante.

É importante lutar contra a imagem caricata da docência, que ridiculariza a profissão, ao mesmo tempo que revela uma visão bastante jesuítica do ensino, isto é, colonizadora e opressora.

Não podemos pensar que a docência é um processo de salvação. Nossos estudantes não podem ser tratades como "alminhas", "abençoados", como rebanho que deve ser convertido.

Essa função não é da escola, nem do professor, que deve adotar uma postura laica e prezar pela pluralidade e liberdade religiosas.

Também não podemos usar a língua para promover o RACISMO LINGUÍSTICO, afinal toda forma de racismo deve ser combatida. No português falado no Brasil, é muito comum o uso do pronome oblíquo "mim" exercendo a função de sujeito. Inúmeras teses vêm apontando para essa mudança na língua. E essa mudança permanece estigmatizada, marcada pelo preconceito racial e pelo preconceito de classe. Mas existem várias explicações para essa mudança! Autores como Castilho, Faraco, Cunha e Cintra, Fiorin e Lélia Gonzáles apontam para essas mudanças há pelos menos quatro décadas.

A explicação mais aceita é que os e as falantes do Latim Vulgar retribuíram as funções sintáticas de acordo com os três casos que permaneceram: o nominativo passou a marcar o sujeito e o vocativo; o dativo continuou marcando o objeto direto, predicativo do objeto e complementos que indicam medida, tempo etc. e o acusativo passou a indicar complementos de posse, interesse etc.

Quanto ao "mim", lá nas obras do Camões, por exemplo, esse pronome já aparecia como "mi": "Ouve os danos de mi" (Lusíadas). Essa forma arcaica átona (mi) deu origem ao atual me, o que explica a função de objeto indireto que pode desempenhar esta variação pronominal.

E quando observamos as ocorrências do uso do pronome, percebemos que há coerência no uso popular. Por exemplo: (1) Essa mensagem não é para mim; (2) Essa mensagem não é para eu [enviar>. No primeiro caso, mim é complemento. No segundo, eu é sujeito. Mas é consenso hoje, para gramáticos e linguistas, que os pronomes mim e eu podem funcionar tanto como sujeito quanto complementos verbais.

Ou seja, falar de indígenas para criar uma imagem derrisória de falantes, é puro racismo. Especialmente porque os povos indígenas, no processo de colonização e de imposição da língua europeia, sofreram com o holocausto que dizimou grande parte das populações originárias que viviam no território brasileiro.

Todes profissionais formados na área de Letras devem se atentar para o funcionamento da língua que usa, reconhecendo que muitas vezes o seu alunado fala um dialeto diferente do seu. E está tudo bem! Tá ligado?

Uma pessoa formada na área de Letras, especialmente em uma universidade pública que preze pela pesquisa, não deve confundir conceitos simples para a área, como língua e linguagem, idioma e língua, escrita e oralidade, temas que são frequentes nas aulas de língua portuguesa de qualquer escola e que acabam sendo cobrados no ENEM e no Vestibular.

Por isso, é responsabilidade de todes professores de língua portuguesa ensinar a diversidade, reconhecer os diversos dialetos sociais e gêneros de texto, sem fazer juízo de valor.

A língua é viva, suscetível a mudanças promovidas por falantes e instituições.

Não fosse assim, ainda falaríamos e escreveríamos "frecha" e "pranta" (como o fazia Camões, no Século XVI, no canto X d'Os Lusíadas), formas linguísticas que hoje não são de uso padrão, mas ainda são muito frequentes em dialetos sociais e regionais.

Além disso, palavras que usamos no cotidiano, nem sempre estão sendo empregadas no seu sentido OFICIAL. É o caso, por exemplo, do verbo aparatar. Sabe-se lá como, surgiu o seu emprego no sentido de "aparecer". No entanto, para o Dicionário Houaiss, esse verbo só poderia significar "tornar aparatoso, suntuoso, cheio de pompa [...> cobrir(-se) de adereços; enfeitar(-se), adornar(-se)".

O mesmo se dá no caso do uso do gênero na língua.

Os trovadores portugueses, lá no Século XII, só podiam marcar o gênero feminino de suas musas usando pronomes: "mia senhor" era o modo como se referiam às senhoras, às mulheres.

Ou seja, foi preciso muito tempo para que se reconhecesse que uma mulher deveria ser "minha senhora", e não apenas "minha senhor". Uma questão evidentemente social que promoveu uma mudança na língua. Na França, até hoje, não existem nomes femininos para muitas profissões, sendo comum, por exemplo, se referir a uma juíza como "madame le juge" (senhora juiz)!

Ou seja, a questão de gênero é antiga... e está relacionada com o respeito e com a dignidade humana.

Atualmente, vivemos mudanças que vão na mesma direção. Aquilo que vulgarmente se chama de linguagem neutra, mas que deveria ser chamada de linguagem não binária, tem por objetivo respeitar a diversidade de pessoas que vivem como cidadãs no nosso país.

O objetivo da linguagem não binária não é neutralizar toda a língua. Não faz sentido, por exemplo, mudar palavras como cidade, febre, ânsia, porque não têm função adjetiva. O uso da forma neutra, de pronomes de tratamento, demonstrativos ou nomes substantivos e adjetivos, tem por objetivo o respeito às pessoas que assim preferem ser tratadas.

Lição antiga que deveríamos aprender ainda dentro de casa: tratar as pessoas com respeito, pedir por favor, dizer obrigado... não nos custa nada. Ódio e humilhação não são um caminho para o bem e para a felicidade.

Usar veículos de comunicação de imprensa, que têm grande alcance, para tratar de temas sensíveis às pessoas de classes sociais e identidades diversas é algo que deve ser feito com responsabilidade, urbanidade e cidadania. No entanto, vemos muito preconceito "disfarçado" de opinião! Isso não pode ser aceito.

Além disso, ao tratar de identidades minorizadas, isto é, que são historicamente oprimidas, como PCDs (Pessoas Com Deficiência), é importante avaliar se o tema abordado contribui para uma reflexão honesta ou não é meramente um artifício retórico que visa angariar leitores e likes!

Quando se fala de escrita em braile por exemplo, é importante saber quantas pessoas cegas numa dada comunidade têm acesso a esse recurso, isto é, tem formação e acesso a impressoras e livros escritos nessa modalidade. Do contrário, se estabelece apenas a polêmica vã e vil: isso sim, pura aberração.

O rigor gramatical que só existe nos dicionários e nas velhas gramáticas não se sustenta diante de nenhuma análise fina, do escrutínio da fala e da escrita de ninguém! E cai por terra quando se impõe sobre qualquer linguagem acolhedora. Do que vale defender o uso da mesóclise, se se é incapaz de reconhecer que não existem índios, mas indígenas, que um dialeto social é fruto de trocas culturais entre povos europeus, africanos e autóctones, que toda pessoa deve ter seu gênero respeitado?

Essas reflexões não servem apenas para enfeitar os livros ou a mídia, muito menos para provocar ou ofender ninguém. São reflexões alinhadas aos Objetivos da Ono para a Agenda 2023, que busca construir um mundo mais igualitário e justo. São reflexões que permitem o exercício da cidadania e vem sendo, até mesmo, cobradas em vestibulares e no ENEM.

Todo mundo que está em idade escolar deve ter o direito de estudar sobre a língua e a linguagem, sabendo se posicionar sobre temas como linguagem neutra, preconceito Linguístico, ou sobre o apagamento racista das identidades dos povos indígenas e quilombolas.

E esse direito deve ser exercido, especialmente, na sala de aula, lugar de poder em que professores não devem diferenciar e discriminar seus alunos e suas alunas, mostrando A TODES QUE SÃO SEMPRE BEM-VINDES.

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